MAIOR INCIDÊNCIA

14/11/2015 19:40

Povoado em Goiás tem a maior taxa mundial de doença rara de pele

Xeroderma pigmentoso atinge 24 pessoas em Araras, distrito de Faina.
Enfermidade deixa o portador até mil vezes mais vulnerável ao câncer.

 

Fernanda BorgesDo G1 GO, em Faina (GO)

 
 
Por causa do xeroderma, Djalma Antônio Jardim quase não sai de casa, em Araras, distrito de Faina, Goiás (Foto: Eraldo Peres/AP)Djalma Antônio Jardim já perdeu várias partes do rosto por causa do xeroderma (Foto: Eraldo Peres/AP)

Portadores de uma doença rara de pele sofrem com isolamento e falta de perspectivas de um futuro melhor em Araras, povoado com cerca de 800 moradores que fica a 40 quilômetros deFaina, na região noroeste de Goiás. Vinte e quatro pessoas têm o diagnóstico confirmado de xeroderma pigmentoso, ou XP, fruto de uma mutação genética que gera hipersensibilidade a luz e deixa os pacientes até mil vezes mais suscetíveis ao câncer de pele do que as demais pessoas. A taxa de incidência registrada na comunidade - de 1 para cada 40 habitantes - é a maior do mundo, segundo a Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso (AbraXP).

Nos Estados Unidos, por exemplo, essa taxa é de um caso para cada 1 milhão de habitantes, compara a pedagoga e presidente da AbraXP, Gleice Francisca Machado, 38 anos. “A concentração de um grupo de portadores do xeroderma na proporção que temos aqui é raríssimo e faz com que sejamos a maior comunidade com a doença do mundo. Muita gente não desenvolveu sintomas ainda. Por isso, os números podem aumentar. Após a constatação do fato, já recebemos diversos pesquisadores, até mesmo do exterior, intrigados com o caso”, explicou.

A doença é hereditária, ou seja, apenas transmitida de pais para filhos, e ainda não existe uma cura. Sendo assim, os portadores precisam se esconder dos raios ultravioletas (UVA e UVB) gerados pelo sol, pois isso aumenta ainda mais a evolução das manchas na pele e o aparecimento de tumores malignos, segundo informações da AbraXP. Os moradores de Araras já passaram por centenas de procedimentos cirúrgicos e tiveram seus rostos mutilados, sendo obrigados a usar próteses rudimentares, feitas a mão.

“Essa é uma realidade muito difícil para o portador do xeroderma, pois na região em que vivemos o sol é muito forte e a maioria trabalhava na roça. Sendo assim, após a confirmação do diagnóstico, em 2010, elas passaram a tentar se prevenir um pouco mais. Mas ainda enfrentamos muitos problemas”, afirmou Gleice.

A explicação para tamanha incidência da doença na comunidade de Araras são os casamentos consanguíneos, ou seja, entre parentes, que fazem com que o gene defeituoso hereditário seja transmitido. “O primeiro caso na cidade aconteceu há mais de 150 anos. Três famílias que se mudaram para a região nessa época tiveram casamentos de membros entre si, o que gerou um grande parentesco entre os habitantes. Por isso, muitos dos descendentes apresentaram os sintomas e morreram ao longo desses anos, deformados, sem mesmo saber sobre o que sofriam”, diz a presidente da associação.

Djalma Antônio Jardim, 39, tem rosto deformado em função do xeroderma pigmentoso (Foto: Fernanda Borges/G1)Djalma Jardim conta que já foi vítima de
preconceito (Foto: Fernanda Borges/G1)

Dificuldades
O dia a dia de um portador de xeroderma exige tantos cuidados que eles permanecem isolados dentro de casa, com portas e janelas fechadas, e só saem durante o dia para atividades inadiáveis. Mesmo assim, precisam reforçar o uso do protetor solar, usar roupas compridas, óculos escuros e chapéus.

O aposentado Djalma Antônio Jardim, 39 anos, luta contra a doença desde os sete anos de idade, quando as primeiras pintas escuras surgiram na pele. Por conta do xeroderma, ele já perdeu o nariz, o lábio superior, parte da bochecha e um dos olhos. No lugar, usa uma prótese.

A minha aparência choca demais as pessoas (...) Então é muito difícil viver fora daqui"
Djalma Jardim, aposentado

“A minha aparência choca demais as pessoas. Morei em Goiânia por dez anos e sentia muito preconceito. Por isso, voltei pra cá, onde todos vivem a mesma realidade. Uma vez eu entrei em um ônibus e sentei ao lado de uma pessoa, que levantou na hora. Acho que ela achou que iria pegar e ficou com medo. Então, é muito difícil viver fora daqui [Araras]”, conta o aposentado.

Segundo ele, as complicações mais graves começaram quando ele tinha nove anos. “Nessa época, eu fiz a primeira cirurgia, mas ninguém sabia direito explicar se era grave. Lembro que enquanto fiquei internado me davam muitas injeções e eu fugia das enfermeiras para não tomá-las, mas esse tratamento não surtiu efeito e as manchas continuaram a aparecer. Desde então, já perdi as contas de quantas cirurgias fiz, mas chuto que são mais de 50”, afirma.

Faina, Goiás

Ele tem outros seis irmãos, sendo que três deles não possuem a doença. Outros três enfrentam, assim como ele, os sintomas do xeroderma. O sétimo morreu em função de complicações do mal. “Ele teve ferimentos graves, muitos tumores internos, e desistiu de lutar. Quando morreu, estava todo deformado e não tinha mais forças para se alimentar. Por isso, ficou deitado em uma cama e morreu seco, de fome e sede”, lamenta.

Djalma é um dos poucos que conseguiu se aposentar pelo Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) e também vive de parte da renda obtida com uma pequena sorveteria que administra. Todos os familiares moram no povoado e seus arredores, mas ele permanece sozinho em uma casa. “Eu durmo, acordo, assisto televisão. Quando é preciso, saio, vou à igreja, principalmente à noite. Mas faço tudo por aqui. Infelizmente, não posso ter uma rotina como a das outras pessoas e sofro com isso desde pequeno, já que nunca pude brincar do mesmo jeito que as outras crianças”.

Descoberta
O xeroderma pigmentoso começou a ser descoberto pela comunidade em 2005, quando Gleice Francisca Machado percebeu que seu filho Alisson Wendell Machado, na época com dois anos, estava com algumas manchas na pele. Ela e o marido são primos de quarto grau. “Levei o Alisson a uma dermatologista e disse que outras pessoas do povoado tinham a mesma característica. Ela ficou assustada e disse que era impossível, pois se tratava de uma doença rara. Aí, outras pessoas foram analisadas e constataram de que todos tinham o mesmo diagnóstico”, lembra.

Gleice começou a pesquisar após seu filho Alisson ser diagnosticado (Foto: Fernanda Borges/G1)Gleice começou a pesquisar após seu filho Alisson
ser diagnosticado (Foto: Fernanda Borges/G1)

Desde então, Alisson tem uma rotina muito diferente das crianças comuns. Atualmente com 11 anos, o menino ruivo e com muitas sardas pelo corpo passa a maior parte do tempo dentro de casa e no comércio da família. Além de um protetor aplicado a cada duas horas, ele também precisa usar blusas de mangas compridas e calças. “É tudo muito difícil, pois tenho que controlá-lo o tempo todo. Ele sabe que não pode ficar exposto ao sol, mas é apenas uma criança e sofre por não poder ter a mesma rotina dos demais. Uma das coisas que ele mais gosta é de cavalgadas, mas elas acontecem durante o dia e não posso deixá-lo ir. Então, eu não sei o que fazer para tentar distraí-lo”, conta a mãe.

Apesar de ter o diagnóstico e saber que a única forma de tentar impedir a evolução da doença é a prevenção, Gleice queria entender mais sobre a doença. Ela passou a pesquisar sobre o tema e o trabalho resultou na elaboração do livro “Nas Asas da Esperança”, que relata o sofrimento diário dos portadores de xeroderma. “As dificuldades enfrentadas por essas pessoas são incontáveis. Elas precisam viver em um ambiente adaptado, com luz especial, e precisam de acompanhamento médico constante. Por isso, decidi que precisava agir e criei uma associação para a cidade, que mais tarde virou nacional, para lutar pelo direito delas”.

Não podemos ficar esquecidos aqui, pois as pessoas continuam morrendo"
Gleice Machado, presidente da AbraXP

Com o apoio do Projeto Rondon, coordenado pelo Ministério da Defesa, e do Ministério Público Estadual de Goiás (MP-GO), Gleice conseguiu formalizar a AbraXP em 2010. Desde então, a associação, que tem portadores filiados em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Bahia, busca melhorias para a comunidade, desde o fornecimento de protetores solares até as consultas médicas periódicas. “Nesses quatro anos de luta, já conseguimos muitas coisas, mas ainda falta muito. Uma das conquistas foi obter o acompanhamento dos portadores no Hospital Geral de Goiânia [HGG], onde foi criado um laboratório especializado em xeroderma”, afirma.

Uma vez por semana os pacientes viajam para Goiânia para acompanhamento médico. Após diversos pedidos, a AbraXP conseguiu que o governo estadual faça o transporte dos portadores. “O grupo sai daqui por volta das 2h da madrugada e chega à capital pouco depois das 5h. Tudo isso porque eles não podem ficar expostos ao sol. Então, viajam durante a noite. Depois do atendimento, esperam o dia todo no hospital pelo período noturno, quando podem retornar para casa”, conta Gleice.

Para a presidente da AbraXP, o acompanhamento médico em Goiânia é uma das maiores vitória para os portadores de xeroderma, mas ainda existe muito a ser feito. “Não podemos ficar esquecidos aqui, pois as pessoas continuam morrendo. O governo tem que nos ajudar, não só auxiliando essas pessoas com uma pensão, mas também adaptando as casas, escolas e ambientes em que elas precisam estar”.