Portadores de uma doença rara de pele sofrem com isolamento e falta de perspectivas de um futuro melhor em Araras, povoado com cerca de 800 moradores que fica a 40 quilômetros deFaina, na região noroeste de Goiás. Vinte e quatro pessoas têm o diagnóstico confirmado de xeroderma pigmentoso, ou XP, fruto de uma mutação genética que gera hipersensibilidade a luz e deixa os pacientes até mil vezes mais suscetíveis ao câncer de pele do que as demais pessoas. A taxa de incidência registrada na comunidade - de 1 para cada 40 habitantes - é a maior do mundo, segundo a Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso (AbraXP).
Nos Estados Unidos, por exemplo, essa taxa é de um caso para cada 1 milhão de habitantes, compara a pedagoga e presidente da AbraXP, Gleice Francisca Machado, 38 anos. “A concentração de um grupo de portadores do xeroderma na proporção que temos aqui é raríssimo e faz com que sejamos a maior comunidade com a doença do mundo. Muita gente não desenvolveu sintomas ainda. Por isso, os números podem aumentar. Após a constatação do fato, já recebemos diversos pesquisadores, até mesmo do exterior, intrigados com o caso”, explicou.
A doença é hereditária, ou seja, apenas transmitida de pais para filhos, e ainda não existe uma cura. Sendo assim, os portadores precisam se esconder dos raios ultravioletas (UVA e UVB) gerados pelo sol, pois isso aumenta ainda mais a evolução das manchas na pele e o aparecimento de tumores malignos, segundo informações da AbraXP. Os moradores de Araras já passaram por centenas de procedimentos cirúrgicos e tiveram seus rostos mutilados, sendo obrigados a usar próteses rudimentares, feitas a mão.
“Essa é uma realidade muito difícil para o portador do xeroderma, pois na região em que vivemos o sol é muito forte e a maioria trabalhava na roça. Sendo assim, após a confirmação do diagnóstico, em 2010, elas passaram a tentar se prevenir um pouco mais. Mas ainda enfrentamos muitos problemas”, afirmou Gleice.
A explicação para tamanha incidência da doença na comunidade de Araras são os casamentos consanguíneos, ou seja, entre parentes, que fazem com que o gene defeituoso hereditário seja transmitido. “O primeiro caso na cidade aconteceu há mais de 150 anos. Três famílias que se mudaram para a região nessa época tiveram casamentos de membros entre si, o que gerou um grande parentesco entre os habitantes. Por isso, muitos dos descendentes apresentaram os sintomas e morreram ao longo desses anos, deformados, sem mesmo saber sobre o que sofriam”, diz a presidente da associação.
Dificuldades
O dia a dia de um portador de xeroderma exige tantos cuidados que eles permanecem isolados dentro de casa, com portas e janelas fechadas, e só saem durante o dia para atividades inadiáveis. Mesmo assim, precisam reforçar o uso do protetor solar, usar roupas compridas, óculos escuros e chapéus.
O aposentado Djalma Antônio Jardim, 39 anos, luta contra a doença desde os sete anos de idade, quando as primeiras pintas escuras surgiram na pele. Por conta do xeroderma, ele já perdeu o nariz, o lábio superior, parte da bochecha e um dos olhos. No lugar, usa uma prótese.
“A minha aparência choca demais as pessoas. Morei em Goiânia por dez anos e sentia muito preconceito. Por isso, voltei pra cá, onde todos vivem a mesma realidade. Uma vez eu entrei em um ônibus e sentei ao lado de uma pessoa, que levantou na hora. Acho que ela achou que iria pegar e ficou com medo. Então, é muito difícil viver fora daqui [Araras]”, conta o aposentado.
Segundo ele, as complicações mais graves começaram quando ele tinha nove anos. “Nessa época, eu fiz a primeira cirurgia, mas ninguém sabia direito explicar se era grave. Lembro que enquanto fiquei internado me davam muitas injeções e eu fugia das enfermeiras para não tomá-las, mas esse tratamento não surtiu efeito e as manchas continuaram a aparecer. Desde então, já perdi as contas de quantas cirurgias fiz, mas chuto que são mais de 50”, afirma.
Ele tem outros seis irmãos, sendo que três deles não possuem a doença. Outros três enfrentam, assim como ele, os sintomas do xeroderma. O sétimo morreu em função de complicações do mal. “Ele teve ferimentos graves, muitos tumores internos, e desistiu de lutar. Quando morreu, estava todo deformado e não tinha mais forças para se alimentar. Por isso, ficou deitado em uma cama e morreu seco, de fome e sede”, lamenta.
Djalma é um dos poucos que conseguiu se aposentar pelo Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) e também vive de parte da renda obtida com uma pequena sorveteria que administra. Todos os familiares moram no povoado e seus arredores, mas ele permanece sozinho em uma casa. “Eu durmo, acordo, assisto televisão. Quando é preciso, saio, vou à igreja, principalmente à noite. Mas faço tudo por aqui. Infelizmente, não posso ter uma rotina como a das outras pessoas e sofro com isso desde pequeno, já que nunca pude brincar do mesmo jeito que as outras crianças”.
Descoberta
O xeroderma pigmentoso começou a ser descoberto pela comunidade em 2005, quando Gleice Francisca Machado percebeu que seu filho Alisson Wendell Machado, na época com dois anos, estava com algumas manchas na pele. Ela e o marido são primos de quarto grau. “Levei o Alisson a uma dermatologista e disse que outras pessoas do povoado tinham a mesma característica. Ela ficou assustada e disse que era impossível, pois se tratava de uma doença rara. Aí, outras pessoas foram analisadas e constataram de que todos tinham o mesmo diagnóstico”, lembra.
Desde então, Alisson tem uma rotina muito diferente das crianças comuns. Atualmente com 11 anos, o menino ruivo e com muitas sardas pelo corpo passa a maior parte do tempo dentro de casa e no comércio da família. Além de um protetor aplicado a cada duas horas, ele também precisa usar blusas de mangas compridas e calças. “É tudo muito difícil, pois tenho que controlá-lo o tempo todo. Ele sabe que não pode ficar exposto ao sol, mas é apenas uma criança e sofre por não poder ter a mesma rotina dos demais. Uma das coisas que ele mais gosta é de cavalgadas, mas elas acontecem durante o dia e não posso deixá-lo ir. Então, eu não sei o que fazer para tentar distraí-lo”, conta a mãe.
Apesar de ter o diagnóstico e saber que a única forma de tentar impedir a evolução da doença é a prevenção, Gleice queria entender mais sobre a doença. Ela passou a pesquisar sobre o tema e o trabalho resultou na elaboração do livro “Nas Asas da Esperança”, que relata o sofrimento diário dos portadores de xeroderma. “As dificuldades enfrentadas por essas pessoas são incontáveis. Elas precisam viver em um ambiente adaptado, com luz especial, e precisam de acompanhamento médico constante. Por isso, decidi que precisava agir e criei uma associação para a cidade, que mais tarde virou nacional, para lutar pelo direito delas”.
Com o apoio do Projeto Rondon, coordenado pelo Ministério da Defesa, e do Ministério Público Estadual de Goiás (MP-GO), Gleice conseguiu formalizar a AbraXP em 2010. Desde então, a associação, que tem portadores filiados em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Bahia, busca melhorias para a comunidade, desde o fornecimento de protetores solares até as consultas médicas periódicas. “Nesses quatro anos de luta, já conseguimos muitas coisas, mas ainda falta muito. Uma das conquistas foi obter o acompanhamento dos portadores no Hospital Geral de Goiânia [HGG], onde foi criado um laboratório especializado em xeroderma”, afirma.
Uma vez por semana os pacientes viajam para Goiânia para acompanhamento médico. Após diversos pedidos, a AbraXP conseguiu que o governo estadual faça o transporte dos portadores. “O grupo sai daqui por volta das 2h da madrugada e chega à capital pouco depois das 5h. Tudo isso porque eles não podem ficar expostos ao sol. Então, viajam durante a noite. Depois do atendimento, esperam o dia todo no hospital pelo período noturno, quando podem retornar para casa”, conta Gleice.
Para a presidente da AbraXP, o acompanhamento médico em Goiânia é uma das maiores vitória para os portadores de xeroderma, mas ainda existe muito a ser feito. “Não podemos ficar esquecidos aqui, pois as pessoas continuam morrendo. O governo tem que nos ajudar, não só auxiliando essas pessoas com uma pensão, mas também adaptando as casas, escolas e ambientes em que elas precisam estar”.